segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Em 2042



Ontem estava sentado na sacada de meu prédio, tomando meu café da manhã, quando, ao olhar para a sala, vi a filha de minha sobrinha, de dezenove anos, com sua namorada se beijando sem preocupação nenhuma. Nem mesmo de sua mãe que passava pela sala preparando a mesa para elas comerem. Muito menos do seu pai que sentado lia o jornal matinal, era impressionante a forma como elas se tratavam. Eram carinhosas uma com a outra e me emocionei com tanto afago. Até senti um pouco de inveja por não ter podido viver com a mesma facilidade o meu amor, então, me lembrei de alguns episódios que acontecera em minha época. Dos tempos difíceis que eu e mais uns amigos passamos para vê-la ali, sem medo, sem se preocupar em demonstrar os seus sentimentos mais puros com sua atual namorada.
Fui a sala, andando bem devagar devido minhas pernas fracas mostrarem que a idade chegou para mim, deixei o meu café de lado,  fui a minha adega e me servi de um delicioso vinho do porto, parei em frente as duas e disse: 

-Venha aqui na sacada, quero falar com vocês.
-O que aconteceu tio? 
Perguntou minha sobrinha um pouco assustada, mas não respondi até voltar para minha poltrona.
-Feche a porta com cuidado e sente-se aqui, tenho umas coisas para falar para vocês.

E falei apontando meus dedos enrugados para as duas.
Eu vivi, ensinei, sofri, caí, levantei e aprendi tanta coisa nessa minha vida que quero nesse momento sintetizar minimamente esses aprendizados e dizer a vocês duas o que ganhei com tudo isso, e tenham certeza que vocês ficarão horrorizadas, mas também felizes.
Hoje do alto dos meus 79 anos, com a pele enrugada e os ossos fracos, mas com a alma absurdamente renovada, gostaria de colaborar com um pouco da felicidade de vocês.
Hoje não se faz ideia de quantas provas tivemos que passar para que pudessem viver assim. Tudo o que estão vivendo agora é fruto de muito trabalho e muita coragem de lutar pelos nossos direitos. E acreditem queridas, eu pensei não estar vivo para ver essa cena, mas cá estou eu.
É preciso muita coragem para ser feliz. Tive que ter muita para lutar pelo meus direitos, mas sabe que mesmo com toda dificuldade que tive, ainda assim, estou feliz por saber que posso compartilhar isso com vocês.

Encostei mais próxima das duas, até onde minha coluna podia chegar e falei numa segurança tremenda o que  estava preso em mim. Eu sentia que deveria ajudá-las a conhecer a história do meu país, uma história cheia de conflitos, regras, proibições, traumas, medos e preconceitos. Uma história com começo trágico, mas com um futuro renovador, ou pelo menos, promissor.

-Pois bem minhas queridas, ser gay hoje é muito fácil do que nos tempos de outrora. Vocês não sabem o orgulho que tenho em saber que não conseguimos mudar o começo dessa história, mas salto de alegria sabendo que pude mudar o final dela. Houve um tempo, no ano de 2010 aproximadamente, que não era tão fácil assumir quem de fato você nasceu para ser, as histórias que se falam sobre esses acontecimentos não chegam aos pés do que vivemos e se pesquisarem na Internet, verá o que as pessoas passaram para se libertarem de padrões estipulados pela religião ou pela ignorância de nossos avôs ou dos avôs deles. Houve jovens que receberam lâmpadas quebradas no rosto simplesmente porque tiveram uma orientação diferente das outras pessoas. Pai  e filho que foram agredidos por andarem abraçados em uma de nossas avenidas principais, não se sabe o número exato de mortes por conta de uma estupidez gritante de mentes pequenas, mas se forem mais fundo na história, lá pelos anos 1980, eu conheci muitas pessoas que tiveram que se casar, mesmo sem gostar, somente para mostrar a família que não eram "doentes". Até chacotas e piadas absurdas eram feitas para menosprezar ainda mais a orientação sexual dos outros. Houve tempos também que quem tinha coragem de chutar o pau da barraca e mostrar o que era e o que veio fazer aqui, passaram tantos constrangimentos. Era uma guerra fria para extinção de quem pensava e agia diferente do que era considerado "normal", ou que não fugia as regras impostas. E do meu quarto, num apartamento alugado, bem pequeno e pobrezinho, eu conseguia ouvir o barulho da fuzilaria preconceituosa em cada passo na calçada. 
Acreditem que em nenhum momento, na história do nosso país, o respeito e igualdade a nossa classe foi tratado como prioridade, e repito, em nenhum momento, ouviram?
Os nossos governantes, cheios de princípios errôneos passados pelos seus pais banalizavam essa igualdade entre todos. Eramos computados como mais um eleitor, mas não eramos respeitados em nenhum momento pelo que somos. Nos tratavam apenas como números, isso quando se aproximava das eleições, mas quando ganhavam, pegavam aquelas promessas e enfiavam sabe Deus onde.
E o que era pior, tínhamos que aceitar esse sistema precário como uma fatalidade. Eles não entendiam que o que queríamos era apenas exercer nossos direitos civis de cidadãos.
Muitos se refugiavam dentro de templos para pedir remissão dos pecados achando que a criatura não passava de monstro criado pelo Criador. Houve jovens que pagaram muito dinheiro com tratamentos psicológicos para conseguirem mudar o seu comportamento, esquecendo que esse comportamento está intrínseco em sua própria alma desde o seu nascimento.
E ainda eramos obrigados a entender que o certo era o casamento de homem com mulher, por conta da procriação da espécie. Eu entendo hoje, que quando Deus virou para Adão e Eva e não estou aqui falando sobre religião, mas quando disse para crescerem e multiplicarem era porque não tinha mais nenhuma outra pessoa no mundo, a própria religião ignorava esse adendo na passagem bíblica. E se eu não estivesse interessado em ter filho? E se eu quisesse ter um filho de outras maneiras? E as mulheres que nasciam estéreis?
O conselho era muito simples, não era a sua sexualidade que determinaria se você seria ou não uma pessoa de bem, mas todos os princípios que os pais, os avôs e todos os justos que o precederam nos passavam. Mas ao invés disso tanta coisa torpe  e estupida tivemos que escutar e pior ainda, aceitar. Até tratamento para curar um homossexual foi discutida nesse país, mas esse era um tipo de ideologia que só quem inventou ou quem era ignorante iria interessar, pois bem, o que eles não sabiam era que esses seres "diferentes" também pensavam, também podiam lutar até que a causa fosse concluída e hoje eu me emociono sabendo que nosso espaço foi conquistado, não da forma que gostaríamos, mas houve um avanço para melhorar a educação de um povo cego pela falta de conhecimento.
Os que eram destratados como imerecidos seres humanos agora seguem felizes, sorridentes, e pensantes, onde sua única fortuna são as conquistas que poderão ser repassadas para sua futura geração como estou fazendo agora, mas se levasse isso para o meu túmulo de nada adiantaria a nossa conquista. Seria como o ouro enterrado, perdendo seu brilho dia após dia e a felicidade de vocês duas seria apenas transformada com suas próximas gerações sem nem ao menos saberem o que passamos para que esse retrocesso de uma grande maioria fosse invertida em progresso.
Por que do que vale a conquista senão para ser repassada, do que vale ver as duas se beijando, se acariciando e se amando se não puder contribuir para o crescimento de vocês? 
Estejam certas apenas de uma coisa, tal como morre um homem, morrerá cada um deles em seu próprio tempo e irão para o mesmo lugar, talvez se encontrando uns aos outros no claro céu ou turvo inferno.

Voltei a posição em que me encontrava antes, senti minha coluna ranger como um porta velha sem óleo. Olhei fixamente para a mesa já posta e conclui.

-Era só isso minhas queridas, agora se me faz um favor, completa minha taça de vinho e traga-me aqui, pois vou me embebedar com vosso amor nesse ano de 2042, esperando que a morte me leve ao meu amado, pois tenho novidades para lhe contar.
Agora quando eu me for, quando a cortina se fechar para mim eu saberei que eles não dançarão sobre minha tumba.




Texto Em 2042
De Diógenes Ramos (Didikayan)

10 comentários:

Bruna Lima disse...

Lindo e adorável, me lembrou o filme V de vingança.
Só espero que não tenhamos que esperar até 2042 para isso. (: E que as futuras gerações se deem ao valor pelos direitos conquistados com a luta da NOSSA geração.
bjooo sudadis

O eterno aprendiz... disse...

Fico feliz que tenha gostado minha linda, tb queria poder dizer que espero que aconteça essa mudança logo, mas a quanto tempo os negros foram libertados e até hoje se ouve falar de preconceitos neh? Torcemos todos juntos... Tb estou com xodadesss do tamanho de um bonde.

Jéferson Correia disse...

Amo né. É só colocar o dedo no teclado (ou a caneta no papel) que você se dobra e desdobra, e sempre transmitindo sutilmente o que há de melhor dentro de ti rsrsrs.. Me sobressair na ilusão deste futuro em que você o descreve, e me questionei na decadência desse mundo torpe em que vivemos. Estar Super fodão Di, obrigado sempre por me terapeutar com suas palavras... rsrs Saudades Master!

Anônimo disse...

Acho difícil que nossa sociedade atinja este nível de maturidade logo em 2040, infelizmente.
Sou contra o homossexualismo, isso significa que vou sair batendo, xingando, humilhando ou menosprezando os outros? claro que não, nem ao menos vou tentar enfiar os meus ideais na cabeça do(a) sujeito(a), da mesma forma que isto não é reciproco.
Prezo a pessoa pelo que ela é, e não por sua cor, raça, tamanho ou preferencia sexual.

O eterno aprendiz... disse...

Ohhhh Jeferson fico feliz que tenha gostado do texto e mais ainda por ter sensibilidade para entender a sutileza do enredo, te gosto muito ta. beijos

O eterno aprendiz... disse...

Tomara que nossa sociedade atinja essa maturidade muito antes disso, mesmo achando que é uma utopia de nossa parte, mas o que não podemos é parar de lutar pelos nossos direitos, fico feliz com o seu comentário e pela respeito transmitido, mas só um adendo HOMOSSEXUALISMO é tratado como doença e não se trata disso. bgd

Anônimo disse...

Eu só sinto ter se passado tanto tempo para as pessoas largarem de ser preconceituosas e aceitar uma coisa que EU ACHO TÃO NATURAL.....

Lindissimo texto.... Parabés.....

Naná

O eterno aprendiz... disse...

Obrigado Naná, amoooooooooooo, eu tb sinto muito, mas não deixa de ser uma realidade neh?

F Barboza disse...

E eu que vivi, senti e ajudei a acabar e depois reconstruir com um amor diferente um grande amor, mesmo com todo esse preconceito e pressão em volta, jamais consegui ter tão latente o desejo de mudança e imaginá-lo em um futuro. As coisas tem se encaminhado, continuemos torcendo. Seu texto é uma crônica inesperada e bela.

O eterno aprendiz... disse...

Obrigado! Volte aqui quando quiser, a casa é toda sua!

Livros - Diógenes Ramos

  • Cicatrizes - Toda Forma de Amor
  • No Meu Céu
  • O Violinista
  • O Bailarino